Planos para os mortos, lições para os vivos

Lorena Nogaroli*
Nos últimos dias, parte da imprensa internacional — sobretudo veículos do Leste Europeu — destacou um contrato firmado pelo governo britânico para a instalação de necrotérios móveis e câmaras refrigeradas, com capacidade para até 700 corpos. Manchetes como “Reino Unido prepara-se silenciosamente para mortes em massa” alimentaram rumores de colapso iminente e planos secretos.
Mas a realidade é mais simples — e também mais complexa. Segundo o The Independent, trata-se da renovação de um sistema de resiliência criado há mais de duas décadas. O contrato atualiza equipamentos já em uso para que o Reino Unido esteja preparado para desastres naturais, pandemias ou atentados terroristas — cenários possíveis em qualquer país. Não é conspiração, mas planejamento. O objetivo é assegurar que, em caso de tragédia de grande escala, a resposta seja rápida e digna, inclusive no trato com os mortos.
Por que, então, a medida foi percebida como prenúncio de tragédia? Porque ainda é tabu discutir a morte e, sobretudo, o papel do Estado diante dela. Em tempos de redes sociais, silêncio institucional não representa neutralidade, mas abdicação da narrativa pública. Onde faltam explicações oficiais, proliferam versões especulativas.
Nesse contexto, a crise não nasce do evento em si, mas de como ele é comunicado. A expressão “preparar-se silenciosamente” carrega carga emocional que, usada como isca de cliques, transforma prevenção em alarme. Quando decisões técnicas não são traduzidas em linguagem acessível, a opinião pública torna-se refém de interpretações oportunistas.
Apesar das distorções, o fundamento técnico é claro: planejar estruturas para múltiplas fatalidades não é morbidez, mas responsabilidade. A gestão de riscos opera pelo princípio da precaução: antecipar cenários desconfortáveis é a melhor forma de proteger vidas. A história recente confirma.
No Brasil, os números falam por si. Segundo o Cemaden, inundações e deslizamentos mataram mais de 2.400 pessoas entre 2014 e 2023. No mesmo período, menos de 30% dos municípios tinham plano de contingência homologado pela Defesa Civil. Apesar das tragédias, pouco se fala em prevenção, simulações de evacuação ou estruturas móveis de emergência. Menos ainda em planos de gestão mortuária — como se evitar o tema afastasse sua inevitabilidade.
Mais do que uma crítica à cobertura alarmista, o episódio britânico é um alerta: governos precisam comunicar com clareza decisões que impactam a vida — e a morte — da população. Omissão informacional abre espaço para ruídos e especulações, que ocupam o vazio da ausência oficial. Como ensina a comunicação de crise, “quem não fala, ouve o que os outros dizem por ele”. Isso é ainda mais grave quando o tema desafia tabus culturais. Falar sobre a morte exige empatia, preparo técnico e coragem política — não apenas para agir, mas para explicar.
À imprensa, cabe o dever ético de contextualizar. Jornalismo responsável não fabrica cliques: oferece entendimento. E ao cidadão, cabe desenvolver educação midiática: não acreditar em tudo que circula na internet, checar fontes confiáveis e reconhecer que compartilhar desinformação também gera responsabilidade.
Evitar o tema da morte não elimina sua urgência. Pelo contrário: fragiliza a democracia. A prevenção de fatalidades não indica colapso iminente — indica maturidade institucional. Comunicar é tornar compreensível o que é difícil de ser dito. O mesmo se aplica à gestão pública. Falar sobre a morte pode ser desconfortável. Mas o silêncio, esse sim, custa muito mais caro.
*Lorena Nogaroli é especializada em Gestão de Riscos e Crises pela LSE. Fundadora da Central Press, dirige o escritório da agência de reputação em Londres.